"Porque às perturbações da memória estão ligadas as intermitências do coração. É sem dúvida a existência do nosso corpo, semelhante para nós a um vaso onde estivesse encerrada a nossa espiritualidade, que nos induz a supor que todos os nossos bens interiores, as nossas alegrias passadas, todas as nossas dores estão permanentemente da nossa posse. Talvez seja também inexacto acreditar que elas se escapam ou que regressam. Em todo o caso, se permanecem em nós, ficam a maioria das vezes confinadas a um domínio desconhecido onde não nos servem para nada e onde, até, as mais usuais são recalcadas por recordações de ordem diferente e que excluem toda a simultaneidade com elas na consciência. Mas, se o quadro de sensações onde se conservaram for retomado, têm por sua vez aquele mesmo poder de expulsar tudo o que com elas for incompatível, de instalar em nós, sozinho, o eu que as viveu. Ora, como aquele que de súbito eu tornara a ser não existira desde aquela noite distante em que a minha avó me despira à chegada a Balbec, foi com toda a naturalidade, não a seguir ao dia actual que esse mesmo eu ignorava, mas - como se existissem no tempo séries diferentes e paralelas - sem solução de continuidade, imediatamente após a primeira noite de outrora, que aderi ao minuto em que a minha avó se inclinava para mim."
- Em Busca do Tempo Perdido, vol. 4 - Sodoma e Gomorra
Marcel Proust
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