sexta-feira, 6 de maio de 2011

Quem a memória guarda permanece para sempre

Lembro-me de nas noites frias da Beira, à lareira, em Dezembro, estar sentada no chão, aos seus pés a ouvir já não me lembro exactamente que histórias (sei que envolvia um burro, um velho e um menino e durante toda a viagem o velho e o menino iam alternando de lugar às costas do burro, porque não se sabia qual a forma mais justa  de seguirem viagem: é melhor estar o menino, pequenino e indefeso, às costas do burro? ou será o velho, já cansado?). Ela contava esta e outra que envolvia uma azinheira.
Lembro-me de em pequena estar ao colo dela e brincar com o colar do coração que ela trazia ao pescoço. Lembro-me dos avisos "eu vou ao quintal botar água nas minhas flores, e tu lancha, come qualquer coisa". E agora o que vai acontecer às flores? Quem as vai regar, apanhar um raminho de salsa ou umas folhinhas de hortelã para me pôr na canja?
Aprendi com ela a pôr pão na sopa porque assim (eu que não gosto de sopa) não lhe sinto o sabor, só do pão, é um efeito extraordinário, uma coisa absurda, mas de facto resulta.
Quando eu adormecia no sofá, do lugar onde agora estou, cobria os meus pés com a manta para que não arrefecessem. No outro dia, por segundos, senti-a, à manta, a ela. Abri os olhos e manta alguma. Dobrada na cadeira e fora de alcance. Eu sozinha.
E é isso que sinto. O vazio da casa, o por momentos pensar a falta de alguém porque tudo tão vazio, onde estarão e perceber que afinal é isto mesmo, e ela não mais vai rodar a chave do terraço e abrir a porta com o saco das compras verde ou azul da mercearia ali de baixo com os rolinhos ou as broas de mel que eu gosto.
A arbitrariedade do mundo e a injustiça da aleatoriedade do universo. Não há como ver um propósito no facto de que ela não vai ver a minha pessoa adulta e aquilo que eu serei num futuro até próximo. Ela não merecia. Mas isso parece não contar para nada, não é justo, assim como não é justo o que fica, o vazio, não saber muito bem como vai ser daqui adiante porque, foda-se, não há como ser igual e a mudança é inevitável. O mundo já não é igual sem ela. E agora?
Só posso continuar a viver o mundo, esperando que algum dia a fiz orgulhosa de mim e para onde quer que a vida me leve, levo-a também, ao pescoço no interior do coração de prata com que outrora eu brincava e agora está comigo. Para sempre.


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