"Inocências
É extraordinária a panóplia de diferentes tipos de pessoas que nos rodeiam no nosso dia-a-dia. É igualmente extraordinário observa-las. Aquelas a quem tenho prestado mais atenção são as que entraram este ano para o meu campo de visão nos curtos espaços de tempo que temos de intervalo entre aulas.
Principalmente as raparigas [...].
Passam por mim, numa alegria de quem não tem uma única preocupação no mundo, a não ser este ou aquele rapaz ou esta ou aquela amiga que fez uma qualquer coisa indevida. Saltam (e ainda bem – quem me dera a mim ter razões para me saltar também), gritam, riem, numa inocência há muito perdida nos corações da Humanidade, como se o realmente importante fosse que o amor por aquele João ou Ricardo, André ou Filipe seja recíproco. A mesma inocência que lhes assegura que o futuro vai ser brilhante, exactamente com tudo que foi projectado ou sonhado. Ou talvez ainda nem sequer pensaram nisso: o futuro parece lá tão longe… A mesma inocência que lhes diz – promete - a felicidade.
[...] Estas moças conquistam agora os seus doze, treze anos e eu naquela idade não saltava, não gritava, nem ria com a inocência perfilada agora por elas. Nunca fui muito de inocências, nunca acreditei na veracidade da felicidade eterna, em que todos seremos felizes durante o período da nossa existência. Sempre senti a Humanidade – principalmente a Humanidade – fria e distante. Vivemos nossas vidas, sem realmente as viver: existimos, nada mais. Não vivemos, só cá estamos a passar o tempo, até o tempo nos passar.
Até hoje, a minha crença na Humanidade ainda não foi restaurada, ou melhor, ainda não foi cultivada - não se pode repor algo que nunca existiu -, porém o que sinto agora que a idade avança são raros, escassos momentos de esperança em que, talvez, quem sabe um dia - aparentemente tão distante – acordemos para a vida, aproveitemos o tempo que passa, talvez até viveremos para sempre…
Encontramos o outro ocasionalmente num gesto, num sorriso (mais ou menos bondoso), num olhar. Pode ou não ser para sempre: esse olhar, esse sorriso. Varia. Da nossa disposição e vontade. E isso sabem estes seres que me divirto a observar – às vezes a disposição para gostar do Joaquim não é muita, e mudam para o Manel. Acontece.
Mas a inocência que vejo nestes rostos chateia-me, irrita-me, maça-me. Não pela sua pureza, mas pelo que vem a seguir a ela: o desgosto, a desilusão, a descoberta que o mundo não é às cores, mas nuns tons de cinzento e por mais que queiramos colori-la, não conseguimos: o peso do mundo, o peso da vida parte-nos os lápis (lá se vai o amarelo, o verde, o azul).
Talvez seja por isso que nunca consegui entender a inocência aparente nestes rostos: nunca a senti, nunca a quis sentir. Porquê sentir? Porquê sucumbir a esta inocência que nos martiriza na descoberta da realidade, da verdade?
Pensando bem, talvez seja preferível sucumbir a ela. Pelo menos, durante algum tempo somos como que felizes, inocentes, inócuos, sem pensar em mais nada a não ser: "será que o Rui vai reparar em mim com esta camisola?" (nunca reparam, ou fingem não reparar, como eu já disse os rapazes são criaturas algo básicas). Durante algum tempo somos felizes, pensamos que o mundo está nas nossas mãos, que tudo se resolverá no fim, viveremos como realeza brocada a ouro. O que vier depois virá. Todas as lágrimas de sal que se seguirão, cairão, mas com a satisfação e o contentamento de um dia há muito distante, se viveu na inocência de um mundo colorido, que não este.
14 de Outubro de 2008"